Pra isso que serve ter amiga, Martha. Pra isso que serve a gente estar numa conversa, e não numa troca de textos que se pretendam autônomos. Pra de repente vir uma bola com efeito, que muda a trajetória da coisa toda. Bater bola é depender de se adaptar ao que vem do outro, né?
De pouco adiantam intenções e projetos férreos!
Não que eu tivesse quaisquer projetos desses.
Pra falar a verdade, tava até preocupado com a possibilidade de ter iniciado uma guinada chata e pesada na nossa conversa, que de chata não há de ter nada! E aí fiquei duplamente feliz de ler as tuas ideias sobre tempo e iguanas. Com aquela leveza…
Teu espírito de férias virou o jogo.
Teu pé listrado marcou a nossa conversa e chutou a bola mais pra longe.
Oba.
Eu estou escrevendo minutos depois de te ler (em vez de esperar aquela semana de praxe; ou, pra ser mais sincero, em vez de ficar matutando, marinando, e de repente ver que a semana passou e eu tenho que escrever meio correndo), justamente pra não perder a pureza da intenção.
— Sou só eu ou a gente vai ficando mais despudorado com o sentimento, o sentimentalismo, e mesmo o “brega”, à medida que envelhece? “A pureza da intenção”. Hmpf. —
Queria escrever sobre apenas uma coisa. Uma coisa só, e só. Um evento.
Mas….
(Eu me conheço)
Primeiro queria deixar aqui meio solta uma citaçãozinha adaptada do Bodhicaryavatara, de Shantideva (séc. VIII) , que eu até usei na minha Lia. “Revestir o mundo todo de couro é impossível; mas você pode usar sapatos.”
A gente anda passando por um mundo cada vez mais pedregoso, mais recortado e mais cortante, né? E, entre tantas outras coisas (sendo que a primeira delas acaba de espirrar aqui do meu lado: saúde, Sandra), essa nossa conversa é um dos artefatos que me ajudam a não sair por aí todo lanhado e ferrado.
E hoje eu vou falar de tempo, como você (acho que vou), mas também dos sapatos do Shantideva.
A gente acabou de entrar em greve aqui na UFPR. Não vou entrar nessa conversa, pra justificar ou explicar uma decisão que no fundo me parece acertada. Ninguém gosta de greve: afinal, é pra isso que ela serve: pra incomodar e forçar uma conversa que, sem ela, não estava acontecendo.
O governo se sente (tomara) pressionado, os alunos se ferram de todo jeito (especialmente com a reposição das aulas depois), junto com a gente. Mas nesse primeiro momento vem aquela curiosa sensação de liberdade, de horas ganhas sem as aulas (porque todo o resto continua: orientações, comissões, produção acadêmica, colegiados, administração…).
A gente sabe que vai pagar por esse tempo sem aulas mais pra frente, quando não tiver férias e emendar anos letivos pra repor os dias perdidos, mas, por ora, rola uma descompressão de alguns dias.
E descompressão anda sendo uma coisa benvinda.
Então, a ela. Ora, direis.
Aí, ontem, eu tive que ir dar uma entrevista pra Educativa aqui do Paraná, que eu vou continuar chamando assim apesar de os desmandos e desestruturações dos últimos governos terem rebatizado de TV Paraná Turismo (porque é daí que vem dinheiro, né? Educação? Cultura??)… e que merece ainda ser chamada assim por causa do trabalho de quem ficou por lá e luta por ainda manter algo de uma programação de relevância cultural. Conversas com “escritores”, por exemplo.
Ehehehehe
O estúdio deles fica nas Mercês (bairro de nome tão bonito), longinho aqui de casa. Ao menos longe pra padrões curitibanos. Com chuva, menos de vinte minutos de carro.
Segunda-feira.
O dia tinha começado doido. Só de olhar o meu diário de ontem eu fico meio tonto. A quantidade e a diversidade de micro-tarefas, entre tentar acertar o calendário do quebra-quebra de paredes do apartamento novo, resolver problemas da edição de um dossiê sobre tradução que estou organizando com uma colega romena, tratar de questões da comissão de bolsas do programa de pós, redigir um pedaço de um capítulo de um livro baseado numa palestra (online) que eu fiz na Universidade de Macau dois anos atrás… tudo isso ainda antes de sair pra levar o Leopoldo esticar as pernas enquanto eu ouvia o audiobook de The Wager, do David Grann. Aí almoçar, voltar àquilo tudo, e zarpar pra televisão.
Não vou dizer (e seria “bom” em termos de construção de efeito, de estabelecimento de voz de cronista etc, mas seria mentira), que eu estava de mau humor, oprimido, irritado.
Tava não.
Tinha chuva, é verdade. Mas era bonito.
E eu ia dentro do meu carrinho quentinho, confortável, ouvindo ainda o audiobook do livraço do Grann, na minha velocidade padrão de cruzeiro (coisa de 75% do limite de velocidade, e olha lá: eu dirijo igual à dona do Frajola). De boas.
Aí, quando eu estava chegando no Centro Cívico, perto do Palácio do Governo (é curioso que pra chegar na Educativa eu tenha que ir até a sede do executivo estadual e desviar na última hora… pra ESQUERDA), parei no sinal.
No sinaleiro, como se diz por aqui.
Pra fazer a tal conversão à esquerda você tem que esperar um sinal verde todo teu. Daqueles que têm uma setinha, só pra quem quer dobrar.
Fiquei ali parado logo ao lado da calçadinha que separa a minha pista da outra, que desce na mão contrária, e que eu teria que atravessar (donde a necessidade do sinalzinho).
E de repente me vem vindo uma menina, atravessando a outra pista. Novinha, novinha de vez. Menos de vinte. Com umas rouponas largas, botas pesadas, fones de ouvido gigantescos, cabelo meio desgrenhado e um sorriso imenso na cara. Uma imagem de felicidade.
Juventude.
Happy-go-luckyness.
Felicidade.
Ela parecia estar cantarolando junto com a música do fone, e quase, mas quaaaaase dançava.
Atravessou até a calçadinha entre as pistas e veio descendo por ela na minha direção. Mas nesse momento soprou um vento mais forte e arrancou o guarda-chuva da mão dela. (Falei que ela estava de guarda-chuva? Tinha que estar: não dá pra fazer parar de chover no mundo todo….) O bicho voou uns dois metros pra trás e ficou na calçadinha.
Ela teve que dar meia-volta e ir pegar o guarda-chuva, embaixo…. de chuva, ora.
E foi aí que a coisa ficou bonita.
Porque em vez de fechar a cara diante da contrariedade dos elementos, dos adereços, e do passar-vergonha em público (a mais imbecil das sensações neste caso, vergonha de pessoas que nunca te viram e que você não deve voltar a ver: mas a primeira que me assolaria), ela sorriu mais largo, e…
te juro, Martha…
em vez de fazer meia-volta ela deu uma piruetinha de bailarina, pegou o guarda-chuva e, sem perder o passo e o compasso da canção que ia na cabeça, voltou a caminhar pela calçadinha, vindo bem na minha direção.
Fiquei eu ali, cavalão, com a sensação de que uma dessas bênçãos improváveis e infrequentes tinha caído ali no centro da cinzenta Curitiba. E de que eu tive a sorte de estar, por obra do Acaso (o deus mais generoso), bem diante daquilo tudo.
Tomara que a vida não te quebre, menina do guarda-chuva.
Tomara que a sorte, a fortuna, os fados te salvaguardem do que de mais duro pode acontecer.
Mas tomara, acima de tudo (e diante da improbabilidade de todo o resto), que você consiga manter essa força e esse estado de espírito: a consciência de que usar guarda-chuva é mais fácil que parar a borrasca, e de que o vento está só sendo vento.
Ele não tem nada contra você.
Não é pessoal
Nunca é pessoal.
Mas isso aqui, agora, é:
Obrigado.
P.S.: isso tudo me lembrou de outro dia de chuva, improvável, em plena pandemia
Fiquei curioso para saber do outro dia de chuva e onde foi parar a tuba... Evanescências alegres de outras cartinhas?
A menina do guarda-chuva, sem saber, teve seu dia de sementinha. Te alegrou o dia, te inspirou um texto, comoveu alguns leitores, fez pensar a outros e quedou como o marco de alguma coisa que todos gostaríamos de ter (ou de não perder nunca).