Mais + Menos + Mas...
Salve, Martha!
Curiosíssimas essas sincronicidades. Serendipidades. Acaso. Sou fã.
Por um monte de coisas que foram me acontecendo, eu fiquei aqui pensando que, a depender de pra onde pendesse o pêndulo da tua resposta, eu tava era com vontade de guinar a nossa conversa pra coisa toda da escrita, da literatura, nem que seja só por uma semaninha, maninha minha.
Engraçado que quando a gente começou a conversar sobre a ideia desta troca de cartas, tanto uma quanto o outro imaginavam que essa guinada ia acontecer no máximo até a terceira semana! (E você se dá conta de que daqui a pouco esse nosso conversê vai indo pra um ano!?) Mas na real, descontadas as manobras inevitáveis (a gente pensa muito nisso, afinal, e a coisa acaba pipocando), fico sentindo que demorou foi um tempão pra gente fazer isso de verdade. O rumo da conversa foi se impondo e os desvios viraram caminho.
E, meu, como isso me agrada. Desvios, desvãos, descaminhos.
Mas agora fiquei encasquetado com umas coisas de “forma”, e em grande medida por causa de outras conversas recentes, todas com mulheres. Primeiro e sempre com a Sandra, aqui em casa, que é com quem eu acabo pensando as coisas que eu penso, porque a gente vê um filme, uma série, e fala disso, lembra de um livro e fala disso etc. Depois, além de você, aconteceu de eu acabar puxando esse fio ainda esses dias com a Luana Chnaiderman (que está preparando um livro LINDO), e com a grande Carol Bensimon, responsável pela belezura que é o NEVOEIRO, aqui no Substack. E isso tudo veio depois da estreia da Fantasmagoria IV, do Felipe Hirsch, que tem uma cena inteira que eu escrevi baseada numa obsessão que deu o tom de todas essas conversas. Ou ao menos da minha participação nessas conversas.
Então deixa eu começar por aí.
Pela pistola.
De Tchékhov.
Ele aparentemente mencionava com frequência essa ideia. E existem diversos registros diversos da formulação. Mas, pros meus fins, fiquemos com: “se uma pistola aparecer em cena, ela terá que ser disparada até o final da peça.” E até aí ok. Ele estava lidando com uma questão de economia de meios, não só cênicos, mas narrativos mesmo. Numa peça, um recorte curto, tiro certeiro (com o perdão da má piada), não cabe ficar incluindo elementos que não venham a contribuir para o desenrolar da trama e o desenvolvimento de ação e personagens. Tudo precisa ser relevante.
Ok. Até aqui ainda “ok”.
É bem verdade que eu já consigo ver uma coisa que, hoje, me incomoda bastante. Porque o “realismo” narrativo, nesse caso acaba traindo de maneira bem radical o princípio de (des-)organização da realidade. Na vida real, se você achar que tudo que surge será relevante e precisa estar encaixado no desenvolvimento da ação, precisa ser “importante e significativo”, isso tem um nome, e o nome é PARANOIA. A vida é bem menos escrupulosa que a imaginação artística, como já dizia outro dramaturgo, o grande Luigi Pirandello. Ela não se preocupa com economia de meios, coerência interna etc…
Mas tudo bem, como diz uma citação da Georgia O’Keefe que a Sandra me fez conhecer: nada é menos real que o realismo. (Ainda podemos falar disso outro dia.)
Só que mesmo em termos da lógica interna das peças, dos textos, das narrativas, a obediência cega, mecânica, ao princípio da pistola de Tchékhov, e também a sua instrumentalização, sua profissionalização via oficinas de roteiro e tudo mais, acabaram gerando umas aberrações que me incomodam pacas. Porque quando você conhece o esquema, a aparição da pistola na primeira cena se torna uma sentença, e se torna uma previsão do futuro. Porque você sabe que, ao contrário da vida, as coisas que aparecem nessa literatura precisam vir a ser úteis. Por que alguém teria incluído uma pistola se ela não viesse a ser usada?
Hoje, no cinema, nas séries, nos livros de certa tradição de entretenimento, e mesmo além dela, isso virou (pra mim) um problema. Porque se num dado momento alguém menciona de passagem que quando era jovem aprendeu a desfazer todo tipo de nó em seu tempo nos escoteiros, você sabe que essa pessoa vai precisar desfazer algum nó lá pra frente, e já começa imaginar quem é que vai amarrar quem, e por quê… A própria perfeição do mecanismo narrativo leva a um esvaziamento até da surpresa (e tem crime maior?).
A cena que eu escrevi lá pra peça do Felipe culmina com a afirmação de que talvez já esteja mais no que na hora de a gente se concentrar em conceber narrativas que desafiem essa lógica e, assim, reafirmem a lógica real da vida real, muitíssimo menos coerente, bem mais imperfeita, assimétrica, imotivada. E era disso que eu estava falando com a Carol e a Luana, desse meu fascínio por formas narrativas que desafiem os mecanismos formais estabelecidos e, com isso, resgatem certo dado de “encanto”, de surpresa e de instabilidade.
Pensa no que é a joia daquele roteiro de “Past Lives” na comparação com as setecentas mil comédias românticas que os americanos de todo o mundo produzem sem parar (um dos gêneros mais amarrados por fórmulas e convenções).
Pensa no que é a lindeza que é a total desestruturação do encadeamento de consequências no final de “Minari”. (Aquele incêndio que boia solto na trama…)
Pensa no que é TODA a obra de Hong Sang-Soo (com um destaquezinho pessoal pro final de Hotel by the River).
(Kwon Hae-hyo, Kim Min-hee e Song Seon-mi em Hotel By The River, de Hong Sang-soo)
E será que é por acaso que eu penso direto em filmes, e direto em filmes com uma pegada “oriental”?
Deixa eu discutir um outro exemplo, de uma escritora foda, Claire Keegan, que você me apresentou quando me deu de presente Small Things Like These. Fiquei tão empolgado com a leitura dessa novelinha perfeita que saí correndo ler Foster, expansão do conto que gerou o roteiro de outro filme lindo, The Quiet Girl, que eu já tinha visto.
E tive problemas.
Primeiro por causa da primeira pessoa. Eu tenho síndrome de Bleak House, que como achava o Nabokov me parece mesmo um livro fragilizado pela escolha da primeira pessoa. E acho que no texto da Keegan essa escolha não fica de pé. A primeira pessoa (em vez da boa e velha narração em terceira com uso de discurso indireto livre, por exemplo), faz com que a gente tenha que atribuir toda a percepção de mundo e toda a poetização da situação à consciência daquela menina, e não sei se cola.
Segundo, porque ela é boa demais em brincar de pistola de Tchékhov. Há uma cena, especialmente, que me parece constrangedora. Quando a menina passeia com o “pai” “adotivo” (aspas que fazem sentido pra quem leu) na beira da praia e de repente eles enxergam duas luzes ao longe, sobre o mar. Foi aparecer aquilo que eu, juro, disparei: ah, não! até o final da cena vai aparecer uma terceira luz e esse passeio vai simbolizar a inclusão da menina na vida do casal… E……. batata! (Sem piada irlandesa.)
E o paralelo da vida da menina com a do filho do casal (o poço e tudo mais) funciona no mesmo nível óbvio gritante. Mecanismos que se entregam, que mostram o maquinário da narrativa e esvaziam o interesse humano, “real”. (E esse pecado o filme comete também.)
Não li o conto original, pequeno, que ela acaba expandindo nessa novela, e talvez essas adiposidades venham desse processo. Mas me incomodaram.
Me incomodaram quase tanto quanto o meu exemplo preferido, atual, de texto bom DEMAIS. E que por coincidência é outro filme irlandês (como eu estou coerente hoje, ao falar de incoerência!): The Banshees of Inisherin, do Martin MacDonagh, que escreveu também a peça original.
O filme é “perfeito”.
Elenco, atuações, cinematografia, música (ah, a música!)… mas o texto é tããão perfeito…. você vê e vai anotando: símbolo, alegoria, paralelismo, correspondência, tema, motivo, contra-tema, motivo menor…. parece um manual. É um mecanismo de relojoeiro perfeito, encaixado e azeitado e, por isso mesmo (pra mim) meio sem vida.
Não tem risco ali, né?
Nada daqueles textos que decidem fazer da forma o campo em que vão lutar para decidir o que são, que tratam as escolhas formais como parte do seu projeto narrativo, que correm risco de verdade (inclusive o risco de parecer mal acabados, levianos, impensados: imperfeitos).
Eu olho pra esses textos perfeitos e vejo cansaço.
Olho pra essas realizações irretocáveis e bocejo.
Eu quero aresta, quero sobra e quero falta, quero tropeço e assimetria…
Quero menos. E quero mais.
Faz sentido?
Que que cê acha???
(De bônus, fique com uma versão maravilhosa de uma canção quadradinha, com o guitarrista beninense Lionel Loueke.
Gracinha?
A música está organizada em células de 15 batidas, em vez das 16 do original…. tente contar enquanto bate o pé e você percebe o “buraco” onde falta o 16… mas, querida, como swinga em 15!)