Tempo
É claro que também eu escrevi, porque nessa profissão não há dia livre. E todos os dias são livres.
Oi!
Escrevo do aeroporto de San Juan. Voltando para casa depois de breve férias com a família (conhecida aqui como Spring break), seguida por alguns dias sozinha em Vieques. Essa é uma ilha de Porto Rico. Um sujinho, ou nem isso, no mapa mundi. Eu descobri o segredo para frequentar as praias idílicas dos calendários: case-se com um caribenho. Toda vez que ele vem ver a mãe eu dou um mergulho.
(Mas tem que ser caribenho do bom, que volta para casa com as crianças para eu ter alguns dias para mim. Eu tenho sorte.)
Ilhas me atraem, pela sensação de ruptura e exílio, e pela separação real do resto do mundo. Fernando de Noronha. Ilha do Mel. Vieques. Paquetá. Mesmo Manhattan, oposta das outras em intensidade, me permite o afastamento.
Numa ilha eu desapareço. É uma invisibilidade boa, que me faz funcionar num estado mental diferente. Em Vieques eu preciso de pouco. Camiseta, bermuda, livros, computador sem internet para escrever. Segui dessa forma por uns bons dias, a pele morena dos pés contrastando cada vez mais com as marcas brancas das tiras das havaianas. Das melhores formas de se medir o tempo.
Então dessa vez não vou conseguir responder sua carta com a mesma profundidade, mergulhando na batisfera da nerdice, enchendo a página com as referências da minha coqueteleira. Eu estou repleta de mergulhos, caranguejos, cavalos, galinhas, coqueiros, ruínas, estradas de terra, estrelas do mar. (E rum).
Sabe, Caetano, tem algo essencialmente bom sobre essa minha segunda vida, a partir dos 50. Eu estou finalmente aprendendo a ouvir a intuição. Essa voz bem tênue, manifestando-se com algum ressentimento, porque o primeiro que ouço é – eu te disse, eu te disse. Eu estou te dizendo há anos mas você não me escuta.
Depois ela continua: O que você quer é menos do que é muito e muito de bem pouco.
Explico:
Uma das minhas experiências preferidas na ilha é olhar as iguanas atravessando o quintal. Elas descem de uma árvore e cruzam o gramado rumo ao pé de carambola no quintal do vizinho. Primeiro uma, depois outra. Vem a terceira, maior e com um papo imponente, certamente o avô do clã. Agora são seis no quintal. Elas prosseguem com passos pequeninos, as patas curtinhas e deselegantes. Sem pressa e avante no ritmo iguanês. Param de vez em quando e fecham os olhos, em banho de sol. Mais alguns passos.
Em cima do pé de carambola há um ninho de andorinhas. E os pais entendem a delícia de um filhote para o paladar iguaniano. Procedem com voos rasantes sobre as iguanas, miram seus olhos, dobram de tamanho em asas abertas. As iguanas não se intimidam. Porque, você já viu alguma iguana morrer por asa aberta de andorinha? Nem elas.
As casas são separadas por uma grade quadriculada. Na divisa as iguanas procuram a brecha para passar. As andorinhas se mostram ainda mais ferrenhas. São passarinhos kamikaze movidos pela evolução.
Agora as iguanas estão embaixo do pé de carambola. E por consideração, pudor ou finalmente medo, elas não sobem a árvore. Ficam por ali, tentando engolir uma carambola madura no chão, e isso para elas é o mesmo que um humano tentar engolir um sapato.
Eis o material de algumas horas dos meus dias.
E porque, Caetano, porque esta mulher escreve sobre iguanas de uma cadeira do aeroporto, ouvindo a salsa da loja das lembrancinhas, pés bronzeados escondidos nos tênis Adidas, já iniciando a transformação para a volta à vida de sempre? Por que iguanas, numa troca sobre livros e filmes, ideias e afins?
Ou
O que se fala quando se fala de iguanas, carambolas e andorinhas?
O que se fala é de tempo. E sobre parar, realmente parar, e assimilar o entorno. Experimentar a liberdade transformadora da quietude. Do não movimento. Essa pequena revolução pessoal, dada pela quebra de contrato com os mecanismos de moto-continuo do mundo.
Existe algo na simples observação da natureza, no exercício de parar e prestar atenção, que me coloca em sintonia com um tempo de mais qualidade. Um tempo talvez mais real. E esse tempo termina por influenciar a minha respiração, o meu sono, a minha percepção do mundo, essa carta e a minha escrita.
É claro que também eu escrevi, porque nessa profissão não há dia livre. E todos os dias são livres.
E li um montão.
Há em Vieques um mercado de pulgas. Como dever ser, sujinho e empoeirado. O cheiro é mistura de mofo com o odor de centenas de humanos entranhado nas roupas doadas. A parte de livros é composta de títulos deixados na ilha pelos turistas. Eu posso passar horas avaliando as lombadas, numa atividade quase transgressora, a intrusão na vida de desconhecidos, acesso livre aos seus gostos literários. Apropriação intelectual da boa, e também bonita e barata, a 50 centavos por livro. A delícia de encontrar o que eu nem imaginava existir mas que se torna instantaneamente fundamental.
Olha o que eu descobri e comprei:
The book of snobs - William Makepeace Thackeray - Uma delícia de texto satírico de 1848 descrevendo os tipos de esnobes da época. (link para o texto na íntegra)
How the other half live, de Jacob Riis. Eu tenho o livro de fotos mas sempre quis ter esse texto jornalístico, descrevendo a vida miserável nos cortiços de Nova York em 1890.
Chakras - O guia clássico para o equilíbrio e a cura do sistema energético - Anodea Judith (botei aqui a versão em português) - Eu espero finalmente entender o que são. Livro antiguinho, até hoje lido e respeitado.
A general history of pirates - Capitain Charles Johnson - Biografias de piratas. A minha cópia já veio ambientada, com areia, páginas amareladas de sol e folhas onduladas pelas águas do Caribe.
E também uma antologia de poesias dos anos 1940, um livro de ensaios da Ann Patchet e uma antologia de contos de amor e desafetos organizada pela Ali Smith.
Pronto, terminei com alguma nerdice.
E concluo do avião, em algum lugar pelo meio dos Estados Unidos. Eu agora vou ler sobre os chacras. Namastê, Caetano. Namastê.