Pois então, Martha.
A gente sempre soube que ia chegar essa hora, né? De falar de meditação.
Engraçado que eu tenho cá os meus pruridos de falar disso. Um pouco como se fosse uma coisa privada mesmo, quase constrangedora de abordar em público. Mas acho que também um pouco por não gostar de várias das associações que acabam se fazendo com a palavra, e com as pessoas que usam a palavra.
Você mesma, por exemplo, fez questão de dizer que começou a praticar antes de virar moda. Eu não. Nem isso.
E tem um orgulho idiota dentro de mim que também se nega a assumir que estou embarcado (no meu caso há meros cinco anos) numa coisa que virou “tendência”. Ou seja, mais um caso de não gostar das associações que acabam se fazendo com a palavra, a coisa, e as pessoas que usam palavra e coisa.
Cabotinismo, teu nome é eu.
E olha que a gente cresceu nos anos oitenta, né? Parte de uma geração que em alguma medida reagiu com burrice a uns pedaços dos ideais da contracultura. Parte de uma geração (eu digo por mim, ainda que usando uma ideia que na verdade me veio da Sandra) que às vezes se esmerou em ser estúpida, em negar o que de bom podia estar vendo, em achar que outras coisas (essas sim inequivocamente boas) estavam garantidas e eram pra sempre.
Então eu já tenho embutido no meu modus caetanandi um certo anti-hippie-ismo que também me indispôs bem mais do que devia a certas dessas questães “alternativas”.
Mas aí eis-que-senão-quandomente eu me vejo com uma estranha curiosidade.
Eu não sei te dizer assim esmiuçadinh o que foi que me levou a tentar esse negócio de meditação. Post-facto a gente encontra miles de narrativas, né? Assim como a gente reconhece o quanto sempre esteve perto de encontrar esse caminho… Mas na real eu não sei.
O que eu sei é que lá por meados de 2018 eu tinha reconhecido um incômodo, uma sensação de que os meus dias andavam transcorrendo meio longe da realidade, ou de que a realidade andava transcorrendo meio longe do meu coração. De que as atividades se sucediam, os empenhos se mantinham, mas eu estava menos presente, menos envolvido de verdade com as coisas, o trabalho, as pessoas, os atos todos. E eu sei também que um dia, num passeio por uma livraria eu topei com um livro bem simplinho chamado 10% happier.
Lá, na livraria, eu fiquei com vergonha de pegar o livro pra ver (cf. supra: cabotinismo), mas cheguei em casa e baixei uma versão em ebook, li no mesmo dia, e a coisa deslanchou. Em menos de dois meses eu tinha lido 14 livros sobre meditação e budismo (sim, como você já sabe, eu mantenho no meu diário um registro de tudo que eu leio). Isso porque pra mim, apesar de eu nunca ter seguido um caminho budista de verdade, o que me interessou foram as duas coisas ao mesmo tempo. Aprender sobre budismo e sobre meditação.
E, guria… a partir daí a coisa me pegou.
Eu comecei pelo tipo de meditação mais ligado ao que o povo chama de vipássana. (Engraçado que nisso, como em todo o resto da minha vida, meu conhecimento é livresco e, nesse caso, veio todo em inglês: e eu demorei pra saber que o acento ficava na segunda sílaba da palavra.) Mas desde o começo me desinteressava o elemento “observe os seus pensamentos”. Eu não estava ali pela profundidade psicológica. Num sentido bem pessoal, eu até te diria que eu estava era interessado em me desligar da minha cabeça, dos meus pensamentos, do fluxo interminável, da voz martelante, das línguas, dos sons, palavras, música, música, música…
*** intermezzo ***
Outra coisa brega de se dizer… mas apesar de todo o meu treinamento universitário, literário etc, eu “me identifico” demais com uma canção da Regina Spektor. Sabe? Uma que diz I hear in my mind all of these voices… I hear in my mind all of these words… I hear in my mind all of this music, and it breaks my heart… Eu roço choro TODA VEZ que ouço isso.
É como se ela estivesse descrevendo o meu barulho…
*** intermezzo ***
e aí essa ideia toda de prestar ainda mais atenção no conteúdo da minha cachola meio que me desagradava.
Foi quando eu li outro livro (a essas alturas eu já estava pelos 20) chamado Why Buddhism works, que é meio que uma tentativa de usar um olhar ocidental, científico e tal, sobre as sacadas da tradição budista. E num dado momento ele mencionava que se a meditação indiana tradicional era pra psicólogos (e a tibetana, pros místicos), a meditação zen era pros poetas. Ora, entre essas três tribos, eu nunca duvidei de qual seria a minha.
E a partir daí eu comecei a tentar entender de zazen, shikantaza e toda a tradição do método sem método, como dizem eles, do simplesmente não fazer nada.
(Nota curiosa é que o comentário do autor se referia na verdade a OUTRA das tradições Zen… a que usa koans como método de meditação. Mas eu guardei a coisa pela metade e desentendi. Pra minha sorte.)
Porque é exatamente isso que eu faço ainda hoje. Você senta (ou, no meu caso, se ajoelha com a bunda apoiada nos calcanhares), fica cem por cento ereto e duzentos por cento imóvel, respira fundo umas três vezes e pronto. Espera o timer tocar. Não se concentra em nada, não tenta nada, não busca nada, não objetiva, almeja, intenta nada. Se um pensamento vier, você não se altera e deixa ele ir embora. Se uma coceira vier, você não se altera e deixa ela ir embora. Se uma pessoa tocar a campainha, você não se altera e deixa ela ir embora.
Acima de tudo, você não espera obter resultados. Você faz porque faz. Pela disciplina de fazer e, acima de tudo (pra mim), pela preciosidade subversiva de realizar um ato disciplinado, regrado, concentrado, que não serve pra absolutamente nada, que te subtrai da lógica da produção, da produtividade, da preocupação… um ato que te prova, também, que o mundo não morre e não explode se você virar as costas por trinta minutos, e que você tem o poder de diminuir a velocidade do trem que te atropela o tempo todo simplesmente sentando no chão. A coisa é tão estranha que um dos textos fundadores da tradição diz com todas as letras (ou todos os ideogramas) que zazen não é meditação.
No tempo em que eu fiz vipássana eu cheguei a ter umas experiências quase lisérgicas. E curti. Com zazen eu no máximo tive umas sensações inexplicáveis de bem-estar, que muitas vezes se arrastam e se estendem por horas e mais horas depois que eu levanto: mas apesar da ausência de fogos de artifício, eu tenho muito mais apreço por essas experiências de agora, e também pela ideia de que não posso me concentrar na expectativa de que elas venham a acontecer de novo. A coisa toda é um imenso aprendizado (na marra) de aceitação, aquiescência, de parar de estrebuchar, mas também um aprendizado de que custa muito esforço ficar em paz.
Eu acho, sinceramente, que esses últimos cinco anos me alteraram. E que eles me deixaram dez por cento mais de-bem. O que eu sei, no fundo, é que que a minha vida hoje me parece um pouco mais presente. Um algo menos zumbi. Um tanto mais concreta.
Sei lá.
Eu não cravo com certeza que isso decorra da meditação, apenas, ou também de ter lido tanto sobre budismo. Ter ficado sabendo que enquanto o Ocidente construía todo esse impressionante castelo de saber, pensamento, lógica, progresso mas também de culpa, de pecado e de trauma, tinha uma galera lá na outra ponta do mundo que baseou 2.500 anos de investigação na sacada fundamental de que “alguma coisa não está legal”…. (a gente pode chamar de dukkha, pode descrever como a primeira das “nobres verdades”, e pode ficar discutindo a tradução mais precisa do termo, mas no fundo é isso: alguma coisa errada não está certa)… e que esse pessoal se decidiu a tentar lidar com esse problema. Corrigir esse incômodo. Séculos antes da nossa psicologia.
O que eu sei também é que cinco anos atrás eu achei que alguma coisa não estava legal, e curiosamente isso me levou exatamente a essa corrente de dois milênios e meio de irmãos e de irmãs que tinham coisas pra me dizer.
E que um dia a gente teria que falar disso aqui, porque foi um dos maiores assuntos da nossa única conversa presencial até hoje.
Porque sim, você que está lendo: a gente sentou e conversou sobre bastante coisa.
Talvez a mais importante delas?
Sentar e ficar quieto.
*** coda ***
Mas veja bem. Esse conversê todo não quer nem por um segundo fazer supor que eu hoje seja uma pessoa “melhor”. Marginalmente despiorada, vá lá. Mas ainda marcada por muito egoísmo, insensibilidade, imaturidade, covardia.
E com isso fica também a pergunta: será que esse caminho todo não tem muito mais potencial de simplesmente pacificar a gente com as nossas próprias merdas?
Será ele todo também não é mero gesto egoico?
Ja conhece nosso Mosteiro zen budista de Ibiraçu? venha fazer um retiro, vc vai gostar…
Texto incrível! Já pratiquei alguns tipos diferentes de meditação e estive afastada nos últimos meses; seu texto tocou fundo aqui e me deu vontade de retornar. Despretensiosamente.