Caetano,
Bem-vindo, colega cinquentão.
Quando a gente se conheceu eu tive a impressão de que você era um jovem velho. Macambúzio sim, mas também curioso e produzindo. Parte da minha percepção vem da sua escrita, muito leve e democrática. Um escritor nunca é apenas o pré-senhor sorumbático reclamando de tinnitus. É também (e principalmente) o que escreve.
Você mencionou a Segunda Vida. 50 anos. Acho que inventei o termo porque precisava de um marco. Algo que me dissesse – levanta-te deste vale de lágrimas (cristãos são dramáticos), você tem o direito de começar de novo. Aqui está seu ano 1. Daqui a 5 anos você será criança pequena na nova vida, daqui a 10 criança grande, e adolescente ali pelos 15. Essa ilusão me ajuda a olhar para frente em vez de lamentar o tempo perdido por dogma, medo, ansiedade, insegurança. Um murundu de conceitos e sentimentos absolutamente descartáveis, em mim por questões hereditárias e culturais, agravado em interações com o mundo, capaz de se expandir por ignorância e inércia.
Resumindo: eu fiz muita merda e perdi muito tempo. Mesmo que eu faça algumas daqui para a frente a minha fase mais conturbada parece estar no passado. E isso é motivo para comemorar. Martha Batalha, você cinquentou, eis aqui um presente, todas as merdas nessa caixinha. Pra te lembrar sobre o que aprendeu e sobre novos caminhos. Não está vendo? Então faz, caramba. O caminho.
Parte dessa Segunda Vida é tranquilinha de alcançar. Meditação, estudos da escola Nyingma de budismo. Suco verde pelas manhãs. Comprei um wetsuit e comecei a pegar onda. Caminho pelas montanhas aqui perto. Cada onda, cada montanha conquistada, é um manifesto-despeito. É a minha minissaia, a rebeldia contra o que ainda é esperado de uma mulher de 50. Velha ficava a minha avó.
Mas é claro, nada é simples (essa é uma frase do filme do Almodovar “Fale com Ela”) Quem me dera que os princípios da vida fossem fáceis de alcançar e condensáveis num post de Instagram. Eu de cabelos molhados, saindo com a prancha do mar de Santa Mônica. Eu com botas de exploradora no alto de uma montanha, em olhar blasé para Malibu. Eu meditando no zafu, envolta no doce aroma do incenso japonês.
Rá.
Você deve conhecer a parábola indiana dos cegos e do elefante. Um rei traz seis homens cegos para o palácio. Ele pede para tocarem um elefante e dizer a ele o que tocam. O homem tocando a ponta da cauda garante que é um pincel. O que toca o meio da cauda tem certeza de que é uma mangueira. O que toca o pé garante ser um pilar. O que toca a orelha diz ser uma cesta. Outro toca a superfície do corpo e se crê diante de um tapete. Eles têm certeza de suas convicções, e brigam entre si em nome da verdade.
A moral é que nosso entendimento do que é verdadeiro e real é limitado pelo que conhecemos. O que eu comecei a perceber nesse estágio é que a vida está se tornando maior, e não exatamente melhor ou pior. Está se tornando mais complexa, com níveis inéditos de percepção do entorno e de sofrimento.
Passei por uns maus bocados aqui. Não vou falar sobre isso, mas foi um momento de imenso aprendizado. Eu tinha certeza de que poderia pendurar minha rede num galho. Mas era a tromba de um elefante.
Em horas assim a gente tem que dar uns passos para trás para ver melhor o entorno, para seguir tateando, para tentar entender, talvez não o elefante inteiro, mas uma parte maior do bichão. E entender, principalmente, que a gente não vê tudo. E nem tem como planejar, porque, quando acontecer, será uma experiência inédita.
Nesta segunda vida eu vou provavelmente perder meus pais e muitas outras pessoas queridas. Eu vou perder meus filhos para o mundo. Se tudo der certo e eu viver muitos anos serei uma uma pessoa do passado presa no futuro (frase da Yasmina Reza, Feliz os Felizes. Bom livro).
E também vou estar mais tempo no mundo e sofrendo com ele. A última semana não foi fácil, pela imensa tragédia em Israel e Gaza. E aí não tem onda que me faça mais jovem, ou talvez tenha, talvez eu continue como despeito às horrendas notícias. Se o mundo está assim, mais do que nunca eu tenho que cuidar do meu jardim (Cândido!).
Mais do que nunca eu tenho que cuidar desse espaço, do que sou e conquistei. Ou talvez eu não tenha exatamente conquistado. Talvez tenha sido um presente, temporário.
Vou colocar a Margaret Atwood para falar por mim (o poema traduzido está abaixo do original em inglês).
The moment
The moment when, after many years
Of hard work and a long voyage
You stand in the center of your room,
House, half-acre, square mile, island, country,
Knowing at last how you got there,
And say, I own this.
No, they whisper. You own nothing.
You were a visitor, time after time
Climbing the hill, planting the flag, proclaiming
We never belonged to you.
You never found us.
It was always the other way around.
***
O momento
O momento quando, depois de muitos anos
de trabalho duro e uma longa viagem
Você está no centro da sala
(Casa, meio acre, um quilômetro, ilha, país)
Sabendo enfim como você chegou até aqui
E diz – eu sou dona de tudo isso
Não, eles sussurram. Você não é dona de nada
Você é uma visitante, de novo e de novo
Subindo o morro, fincando a bandeira, proclamando
Nós nunca pertencemos a você
Você nunca nos encontrou
Foi sempre o oposto.
Isso não é... isso?
Eu toda cheia de mim, dona de muito e até da verdade, mas então chega a Segunda Vida e diz, ah que fofo, você acha que eu sou um elefante? Eis aqui uma selva. E não se esqueça, você veio a passeio.
Engraçado. Eu achei que ia escrever sobre como essa semana me impactou. Israel e Gaza, num conflito tão século XX. Fiz vários textos mentais. Kurt Vonnegut e Cama de Gato. Yuval Harari. Timothy Snyder. Gente que eu li essa semana porque, quando o mundo complica, peço aos grandes ajuda para entender. Eu estou muito cheia de tudo de fora, num destes momentos que as antenas de escritora captam demais. Dói, mas é preciso.
Na boa, Caetano, estou tão chocada que desconfio ser lorota tudo o que Darwin nos disse. Evolução uma pinóia, somos todos descendentes de Adão e Eva. Uma grande família, disfuncional e com rancores. Só assim para explicar como um conflito num lugar tão pequenino (nosso berço) gera ondas de protestos e opiniães pelo mundo. Mas era isso, pensei que o texto iria por esse lado, mas foi por outro.
Veio essa tromba, pra você.
(E feliz demais com a sua Lia, foi uma honra ter lido. É a melhor das sensações, colocar o ponto final na filha e soltar no mundo, né? Vai ser lindo. Ganharão os leitores com esse romance).
Também fiz 50 por agora, precisava destes textos, obrigado!
Fico esperando.