Gringos+Musas+Viva a Lia
É fascinante que as musas a quem que os artistas recorrem, convencidos de que precisam de algo exterior a eles, tenham em si o gene da memória
Caetano,
Antes de tudo,
VIVA A LIA!!!!!
Que chega esse mês às livrarias!!!!
Celebre, receba os louros, você merece e merecem os leitores. Lia é um romance profundo, poético, sofisticado, intrigante, instigante, vale demais a leitura (releitura no meu caso, quando aparecer pelo Brasil no segundo semestre).
E paremos uns segundos para contemplar esta capa:
Hoje eu vou de Carnaval e de musa, e começo pela sua sensação no baile da infância, de não conseguir ser você mesmo. Essa sensação é altamente carnavalesca. Carnaval é quando ninguém é de ninguém e principalmente você não é de você.
Uma cena da minha outra vida: Verão no Rio, quadra da Mangueira. Lotada, temperatura de sauna a vapor. Povo suando e tomando cerveja que nem Gatorade. Pelas caixas de som vem o samba-enredo de anos anteriores. É ainda o esquenta, o ensaio não começou. Nesta noite eu estou com Teresa, ex-baiana da velha guarda que vem a ser (inverossímil mas pura verdade) a senhora que cuida do escritório do Millôr Fernandes. Teresa e outras senhoras estão em cadeiras de plástico brancas, cada qual com sua latinha de Skol. O calor é luxuriante, espécie de abre alas para o que vem. Perto das onze entra a bateria e o lugar se transforma. É a celebração além da celebração. A música, os instrumentos, o vozeirão do cantor, a exuberância da porta bandeira. Agora são centenas de pessoas dançando. Teresa tem as pernas arqueadas e dificuldades para andar, mas se levanta, e menino aquela mulher sambava.
Eu me lembro desse gringo. Branco rosado, com sandálias de tiras negras que entregam a gringalidade de alguém. Um palmo maior que todo mundo. Chega a bateria e o homem pira. Requebra desengonçado e nem aí. Parecia, sei lá, um pelicano adulto aprendendo a voar. A capacidade dos gringos de errar o gingado tem uma constância que beira o genial.
Tem algo que acontece na Mangueira, e enquanto escrevo meus braços se arrepiam: quando a quadra está saturada de gente e de música, a força da bateria retumbando nas paredes e voltando em dobro pra a gente, o teto se abre. Para o céu vai a música e a dança, para dentro vem o ar fresco. É simbólico, esse oferecimento aos céus pela vida, pelo melhor da vida, aquele momento.
Eu não me esqueço desse gringo. Saltando de olhos fechados, rosto virado para o céu de estrelas.
Eu me senti feliz pela felicidade dele.
Pelo desprendimento. Pela autenticidade.
“É claro que no fim você se torna você mesmo”.
Eu tenho esse livro (Although of course you end up becoming yourself – A road trip with David Foster Wallace) – Li antes do tour do Chuva de Papel. Achei, erroneamente, que iria me inspirar. Descobri que o livro não é sobre o tour de Graça Infinita, e sim sobre o que se passa na cabeça do DFW tendo como pano de fundo o tour, o entra e sai de hotel, avião e restaurante.
(Although of course you end up becoming yourself é uma conversa-entrevista entre DFW e o repórter da Rolling Stones David Lipsky durante o tour de Graça Infinita.)
David Forster Wallace é um escritor que dedicou (e sacrificou) a vida para se tornar ele mesmo em literatura. Nesse livro ele assume a dificuldade em manter relacionamentos, de seguir por uma existência mais, digamos, normal. Diz que prefere cachorros a uma companheira, por exemplo. Os cachorros não pediam muito, ele podia sumir para escrever. Imagina a energia desse homem na página.
Mas para quem não é gênio (eu aqui), e tem que trabalhar com esforço para fazer algo bonito (bater no meu topo, eu diria), e no meio disso tem louça, contas, filho, relacionamento, ou seja, para quem é essencialmente humana e assumidamente limitada por laços sociais e afetivos, e bote na conta o peso de uma herança patriarcal que incita a insegurança feminina e a falta de prática em se fazer entender e se expor, aí, meu amigo, é muito mais difícil se tornar você mesma.
É dar uma de Michaelangelo, ao tirar do mármore tudo o que não era Davi. É tirar da gente o que não é a gente. Um longo e cuidadoso processo, e é preciso tomar cuidado porque, levando isso muito a sério, o que fica? Pelo Budismo não fica nada, porque o ego é feito de camadas, como uma cebola.
Vou pegar uma transversal porque se eu enveredar pelo lado espiritual-filosófico vou concluir que a gente não é a gente e o mundo não é o mundo, e aí pronto acabou a festinha.
Mas se eu for pela transversal e falar de processo, do processo para ser tornar você mesma e ser autêntica, da importância da autenticidade durante o processo, e que autenticidade pode ser tanto dizer a verdade aos outros quanto valorizar quem você é, e autenticidade está na busca, no ego e na voz (Batalha+Galindo+Trilling), se a gente conseguir, enfim, esta confluência, confraternização e congraçamento (estou esnobando) de autenticidades, se isso se der de um jeito ou de outro porque há um montão de formas de ser neste mundo, então pronto, já pagamos o ingresso para essa temporada na Terra.
Mas essa conversa é meio que discutir o sexo dos anjos para mim. Complicada, e não sei se importa.
Explicando de um jeito bem mais simples e muito mais legal: o Shel Silvernstein tem um livrinho chamado A parte que falta. É sobre um ser que tem uma peça faltando e decide sair por aí em sua busca. Ele vai para cima e para baixo e adiante em aventuras, e quando finalmente encontra, coloca a peça e se vê completo, descobre que precisa perdê-la. Porque o que o faz completo é a busca. O ato de avançar em busca de sua totalidade é o que faz dele, ele. Autenticidade, para este ser, não era estar completo, mas o processo, o movimento para se completar. É um livrinho incrivelmente profundo e simples. Meu tipo de livro.
Falemos de literatura. Pessoalmente, eu vejo (melhor dizer que sinto) que o que me interessa e me envolve como leitora e escritora em termos de autenticidade é voz.
Na longa entrevista com o Lipsky, o DFW fala de voz. Ele acreditava ser a saída para algo novo na literatura. Voz traz intimidade entre leitor e autor, e dada a solidão da vida contemporânea é a porta de entrada de um escritor para a cabeça de quem lê. É a possibilidade de gerar contato e criar intimidade. É pessoal.
Voz é autenticidade porque só pode sair das nossas cordas lítero-vocais. Tem a ver com o modo com que a gente escolhe descrever a vista da janela do carro. A tal vista que é de todos.
E para concluir, porque já passa das cinco e a cozinha me espera: falemos das musas. As musas evocadas por Homero no início da Ilíada, algo como Pelamor, fiquem comigo enquanto eu escrevo essa saga e inauguro a Literatura Ocidental. Baixem no quarto porque sozinho não vou dar conta.
Pela mitologia grega as nove musas nasceram de um encontro de nove noites entre Zeus e Mnémose. (Mitologia Grega = fudelança). Mnémose é a Deusa da memória. E não é fascinante que as musas a quem que os artistas recorrem para inspiração, convencidos de que precisam de algo exterior a eles, tenham em si o gene da memória? Não é fascinante que o ato artístico, a inspiração, que a gente acredita estar no entorno, tenha esse componente tão intrínseco a nós mesmos? A nossa memória, parte da nossa autenticidade?
É o que temos para hoje, Caetano.
Boa semana.