Poesia numa hora dessas? + Sempre
A poesia existe principalmente para horas estranhas. Para quando a gente está encalacrado nesse mundo ridiculamente racional
Caetano,
Você começou a última carta com poesia. Nos últimos tempos eu tenho lido mais poesia, para lidar melhor com o MUNDO e o meu mundo. Talvez tenha a ver também com a idade. Aos 50 estou achando que a vida é esse buraco sem fundo. Poesia joga ali uma luz, ao passar de leve pelo racional e expor o indizível. (Olha aí que bela e poética contradição, o indizível é exatamente o que a boa poesia diz.)
A ficção também faz isso muito bem. Ela te enrola numa historinha enquanto te finca uma nova visão de mundo, do outro e de você mesmo. A ficção ajuda a elaborar a realidade enquanto você se ilude com a hamartia de algum herói.
Mas a poesia faz isso em pouquíssimas linhas. É um nocaute. Para mim, uma das melhores frases sobre poesia é do Veríssimo, a clássica “Poesia numa hora dessas?” Porque a poesia existe principalmente para horas estranhas. Para quando a gente está encalacrado nesse mundo ridiculamente racional e precisa entendê-lo por outros meios, ou simplesmente se perder nas possibilidades da língua, na beleza e destreza da combinação das palavras, no ritmo dos versos, na multitude de percepções do entorno, naquele tal de indizível.
É interessante porque, quando a gente fala de um romance ou de um filme a conversa tem um nível de intimidade. Mas dividir certos poemas é se expor o dobro. É como abrir a camisa e mostrar não os seios, mas o coração. E digo isso com uma ingenuidade que pretendo manter como leitora de poemas. Quando eu leio romances e contos estou trabalhando. Penso em estilo, estrutura, diálogos, ponto de vista. Quando leio poesia estou de folga. Eu só quero sentir e pronto.
E nem sou uma grande leitora de poemas. Volto sempre aos mesmos. Para esse Castro Alves:
“Não chores, meu filho, / Não chores que a vida / É luta renhida: / Viver é lutar. / A vida é combate/ Que os fracos abate, / Que os fortes, os bravos / Só pode exaltar”
Para esse Silvio Rodriguez, sobre Cuba
“Vivo em um país libre / Qual solamente puede ser libre / En esta tierra, en este instante / Y soy feliz porque soy gigante”
Com esse final fortíssimo
“Soy feliz, soy um hombre feliz / Y quiero que me perdonen / Por este dia / Los muertos de mi felicidad”
Tem na internet as versões do Silvio cantando e do Chico cantando. Ambas fazem minha garganta apertar. Menino, eu me imagino numa Havana utópica, abrindo a janela do meu apê no Malecon, vendo as crianças passarem a caminho da escola, uniformes novos, lancheiras fornidas.
Verdade que meu racional-budista-pró-viver-bem-anti-culpa discorda do fim do poema, desse negócio de ter que pedir perdão aos mortos da revolução. Os mortos da revolução morreram exatamente pro cara ser feliz tomando cervejinha e fazendo amor com a mulher dele, que o ama “sin pedir nada, o casi nada, que no es lo mismo, pero es igual” – que incrivelmente lindo, isso.
Meu racional budista-todo-o-resto pensa: vai tomar cerveja e amar sua mulher, camarada. Em dobro, como homenagem aos mortos da revolução. Precisa pedir desculpas não.
Mas, a força dessa letra, sabendo que foi feita por um compositor cubano. Falem o que quiserem de Cuba, do horror da ditadura, de como degringolou e tal, mas eles são uma pulga no Atlântico, peitaram os Estados Unidos e depuseram um ditador fantoche. Os caras venceram e essa vitória deve ser respeitada e admirada.
Eu podia continuar com alguma Cora Coralina, Drummond, Bandeira, com alguns americanos que me agradam, mas o meu poeta de coração é o Vinicius.
Gente, eu amo esse homem (momento tiete e nada intelectual, mas como disse no setor poesia eu prefiro seguir amadora – putz, ia fazer uma associação piegas e mediócre, uma derrapagem compatível com meu status de amadora, mas vou manter a linha).
Bem, deixa eu me recompor e elaborar.
Li Vinícius pela primeira vez numa edição das obras completas de 1969. O livrinho verde foi um presente da minha mãe para o meu pai no início do namoro. A dedicatória diz “Márcio, gosto de você.” É pura e simples, embebida de tudo de bom do início dos namoros. É cheia de possibilidades, cheia de um futuro - para mantermos a sintonia poética - indizível.
Eu me apoderei dessa edição por um tempo considerável. Mudei de casa umas dez vezes, e o livro comigo. Já reparou que tem livro que vai para a estante e não sai nunca, enquanto uns outros perambulam? Com esse livrinho era assim. Fui muito para a cama com esse Vinícius completo e compacto. Poesia, muito mais do que narrativa, é feita para ser relida. É feita para a gente pensar: ah, eu quero me sentir assim ou assado de novo, cadê aqueles versos que têm o poder.
O mais legal de ler Vinícius no livrinho verde era notar num espaço conciso e nas breves horas de leitura noturna a transformação do poeta. Ele deixou de ser esse jovem preocupado com as estrelas e o céu, o amor do público e da crítica, para se tornar este poeta maduro, elegante, levemente esculachado e deliciosamente escatológico. Vinícius soltou as amarras e se tornou a melhor versão dele mesmo. E isso me faz refletir sobre mim, sobre como eu devo escrever sem medo, sem pretensões além de fazer o melhor naquele momento.
De repente num outro post eu posso fazer a minha curadoria Vinícius, mas nesse quero te perguntar – você conhece o Mensagem à Poesia? Esse poema em que o Vinícius diz – Poesia, eu acho você o máximo, mas com tanta gente sofrendo não vai dar pra gente ter um namoro alienado agora. Eu não sei quando, eu não sei como, só sei que agora, não.
As nossas duas últimas cartas falavam exatamente sobre isso. E depois, lendo o Vinícius maduro, a gente percebe que ele se ajeitou muitíssimo bem com a poesia e com a realidade, aliás, ele se torna um grande poeta ao entender que as duas se complementam e tornam vivo tudo o que ele escreve.
E daí que a minha mãe, que não é boba nem nada, veio de visita e pegou o meu Vinícius de volta. Tenho aqui comigo a nova edição da nova Fronteira. São dois tarugos numa caixona, e por mais que eu celebre qualquer edição e reedição, essa não me apaixona. Com esses livrões eu me sinto lendo um poeta sério numa edição de respeito, e sinto falta do meu Vinicius conciso e intimista. É como se eu tivesse trocado um namorado de juventude por um marido de terno com emprego em estatal nos idos 1970.
Fico por aqui porque preciso fazer o jantar. E depois tem a louça (sempre ela) e preciso ficar com as crianças. O dia foi longo, começou comigo planejando estante, eu finalmente terei uma biblioteca decente. Algo que imaginei que se daria ali pelos meus 25 anos. Mas a vida me mandou por uns outros caminhos e quando vi se passou um quarto de século, comigo ainda lidando com livros empilhados numa estante empenada. Mas agora vai.
Poesia é - very true - para ser relida
Texto mais bonito que li nas últimas semanas substackianas.
Muito obrigado por isso! <3