Avesso da pele + Avesso do gênero
Tenho pensado muito no avesso do gênero, e questionado conceitos como escrita feminina e feminista. Desconfio da rigidez e das limitações
Oi!
Que carta alegre, a sua última. Cheia de encontros e celebrações. Me fez pensar no que a gente já conversou, sobre a arte como resposta (mal)criada ao sistema. Mas enquanto você, acadêmico multimídia, anda pelos palcos, se imiscuindo com esse povo do teatro, eu sigo o caminho inverso. Quanto menos acontece na minha vida, melhor eu me sinto.
Estou usando o Insta só como portfólio. Whastapp é para falar com a família e uns poucos amigos. Assino e leio uns quantos jornais. No mais, estou de frente para esta tela, lendo livros (papel) e me doando para o projeto de criar e manter uma família, e se recriar e manter no processo. Escrevo bastante sobre isso no meu diário. Sabe que eu nunca reli? Décadas de escrita. Inclusive eu tenho que ver isso, dar uma editada.
Vai que.
Sendo mulher, já ouvi várias vezes o conselho de usar calcinha bonita. Vai que a gente morre atropelada, a saia levanta e tá lá no meio do asfalto a prova do nosso desleixo. Da nossa insensibilidade estética, ante um mundo de olhar masculino. Parte da minha liberação é achar que diário velho é mais preocupante que calcinha feia.
Mas deixando a moda e os escritos íntimos, voltando ao meu cotidiano monótono. Estar nele é meu modo mais autêntico de ser.
Há quem use de modo brilhante a energia das redes, quem absorva e retorne instantaneamente com algo válido. Gente que funciona no ritmo do nosso tempo. Sabe quem tinha o ritmo certo de uma outra época? O Chico Buarque compositor nos anos da ditadura. Era um álbum atrás do outro, respostas rápidas e precisas para o momento. Aquele homem não levou nenhum desaforo para o subconsciente. Hoje ele não é tão rápido mas ainda no ponto (“Anos de Chumbo”, “Essa Gente”). É também um escritor que eu releio pelas sentenças. Ler Chico é como sintonizar numa onda de rádio e ficar ali, em transe e completamente envolvida, até a história acabar. (Andrea Del Fuego é outra que me envolve em ritmo e sintonia).
Eu busco na escrita essa mistura de voz com ritmo. Quando se dá, não importa o que a Sherazade está contando para o Sultão. Ele ouve o que for e pelo prazer da entrega. Pelo feitiço. Qual a receita? Não tem. Estamos falando do ouvido da escrita. De ouvir e sentir cada sentença. De prática e intuição.
Bem, seguindo de acordo com meu ritmo lento e reflexivo: sabe no que eu pensei bastante nas últimas semanas? No “Avesso da Pele”. Tá certo que todo mundo já falou do assunto, mas não me preocupo em ser a primeira, e hoje eu quero falar de avessos.
Escrevo baseada na memória da leitura, porque meu exemplar está no Brasil. Mas a memória de uma leitura é sempre a mais importante, por permanecer na leitora e não numa prateleira.
Antes de eu seguir, um aviso:
Toda vez que eu escrever VAI TER SPOILER, é porque, adivinhem. Aos que não leram “O Avesso da Pele”, sugiro que
1- Leiam
2- Passem batidos por esse texto, até a parte em que eu escrever FIM DA PARTE COM SPOILER.
Combinado? Vamos lá:
VAI TER SPOILER
Duas partes me marcaram no “Avesso da Pele”: o relacionamento entre o protagonista e a namorada loura, e o final. O relacionamento e a cena de sexo (cenas? não me lembro) não me marcaram pelo erotismo. Eu senti, por exemplo, mais erotismo ao ler certos trechos de Rubem Fonseca ou Alice Munro. O trecho que me marcou, que na verdade me incomodou, foi quando o casal começa a chamar um ao outro de vem cá minha lourinha, vem cá meu neguinho.
Desses momentos em que dizer algo na ficção é muito mais eficaz do que repetir dez vezes o mesmo na não ficção.
Porque todo mundo sabe: o racismo é cultural, ninguém nasce racista, e blá blá blá. Mas levar o leitor para a cama junto um casal, e tirar desse casal a possibilidade de um amor inocente e feito com o avesso da pele, aí o entendimento se dá em uma outra parte do leitor, mais profunda e momentaneamente vulnerável, aberta por este instante pelos artifícios de sedução de uma história. E o leitor entende, com estas pessoinhas imaginárias se amando, a internalização do racismo, e com ela a estrutura social, cultural e ideológica, de um país.
A censura, a meu ver, não é pela cena de sexo. O que se deseja censurar é a possibilidade do entendimento do racismo.
FIM DA PARTE COM SPOILER.
Outra parte que me marcou, é claro, foi o final.
VAI TER SPOILER
De novo escrevo de memória: creio que o pai do protagonista, professor, está num ônibus, ou voltando para casa depois da aula, pensando em Dostoievski. Por dentro ele não estava sendo negro, ele não estava tendo pensamentos negros (ou pretos, não sei a melhor forma de dizer). Ele não estava com medo de policiais ou elaborando intelectualmente o racismo. Ele estava exercendo o direito de ter ideias sofisticadas sobre a condição humana. Então ele morre, justo quando estava exercendo esse direito, e porque estava exercendo esse direito (ele não ouviu muito bem as ordens do policial).
FIM DA PARTE COM SPOILER.
MENTIRA VAI TER MAIS SPOILER
A cena final funciona como cena e como símbolo. Para mim ela diz que os escritores/protagonistas/pensadores negros não têm muito espaço para pensar ou criar nada que revolva além da própria condição. Se isso acontece, o que ele cria deixa de ser relevante para aquele momento, deixa de atender às expectativas do dele que é esperado, e ele morre.
Ao mesmo tempo, num país injusto como o Brasil, existe o luxo da escolha?
Um escritor, um protagonista negro, está sempre sobrevivendo e tentando elaborar a sua condição (de pele) num país racista. E tentando, também, elaborar a condição (de pele) dos que vieram antes dele. Essa é a história do “Avesso da Pele”. O pai do protagonista morre justo quando não está elaborando esta condição, quando tem pensamentos que são o avesso da pele. Morre por ter pensado em algo mais do que a própria condição.
FIM DA PARTE COM SPOILER
Penso demais nisso, Caetano. Porque é só a gente tirar a palavra negro e colocar a palavra mulher no parágrafo acima, trocar país racista por país machista e patriarcal, para o mesmo dilema se dar. Mesma receita.
Mas não deveria ser um direito de todos escrever sobre o que for?
Esse é inclusive o tema de American Fiction, filme sensacional que uma leitora daqui me sugeriu, e que eu amei. Como foi mesmo que eu te disse naquela mensagem de whatsapp? Me lembrei – VEJA “AMERICAN FICTION”.
O Avesso da Pele é um livro que tinha que ser escrito, que veio para preencher essa exata lacuna na literatura brasileira. Um livro autêntico e necessário. É quase vergonhoso que só agora o Brasil tenha conseguido gerar seu romance clássico sobre o racismo. Vergonhoso, mas, como diria a Graúna do Henfil, eu tô vendo aí uma esperança. Jeferson merece todos os louros, a glória e a honra da censura.
“O Avesso da Pele” é também perigoso por ser delicado. Não há nele (e essa foi a minha impressão de leitura) uma escrita de rancor, mas uma escrita de afeto. E meu amigo, pegar o leitor pelo afeto é abrir para novas possibilidades. É formar uma nova geração que o racismo da mesma forma que a geração passada. E imagine! Daí a ter um neto com cabelo ruim é um pulo.
Pois então. Eu tenho pensado muito no avesso do gênero. Tenho questionado conceitos como escrita feminina e feminista. Desconfio da rigidez e das limitações. Temo que condicione mulheres a escrever sempre sobre os mesmos temas, a pensar sempre da mesma forma. A não sairem da zona de conforto e se arriscarem intelectualmente além. Eu acredito que a manifestação maior de uma escrita feita por mulheres deve furar esta bolha que nós mesmas criamos. E deve levar, nesse pulo para além de nós mesmas, a nossa forma de contar, de ver o mundo e as nossas experiências. (Musas, filhas de Mnemosine=memória).
Escrever o “Caderno Proibido” nos anos 1950 é arte.
Escrever o “Caderno Proibido” 70 anos depois não é.
E não quer dizer que a leitura de “O Caderno Proibido” em 2024 perca o impacto. Porque o livro emana autenticidade e a energia de quando foi escrito. Quer dizer que o conteúdo desse caderno, e do sentido de proibição, são outros.
É isso, meu amigo. Um naco dos meus pensamentos nos últimos dias. Sigo forte na meditação, e leituras budistas. Essa foi uma semana de longas caminhadas ouvindo Alice Munro, a voz interna me perguntando – como ser Alice Munro, Alba de Cespedes, hoje? Cá no meu silêncio e meu mundo monótono, eu tento não repetir as narrativas convenientes e que são esperadas de mim.
(Pelo que eu me lembro o narrador não morre, tá apenas recordando a morte do pai, professor de literatura. Não?)
Adorei o texto, parabéns Martha.
Essa troca entre vocês aduba o pensamento